domingo, 21 de abril de 2013

[Vem numa espécie de angústia aos lábios]


A poesia é criar uma espécie de angústia para a resolver.
                                                  Paul Valéry

Vem numa espécie de angústia  aos lábios
a minha poesia      
Sabe-me a palavra dorida   que eu própria feri
para depois abrir os braços o mais que posso
e ir de encontro a essa opressão
que sustento    que recrio   que me instalo
Rasgo dois furos   um em cada mão aberta
e transporto a angústia para a minha cruz
alço-a no peito aberto a tudo
dou-lhe o corpo inteiro para que ela fique
se enraíze como planta carnívora
Gosto que me roa   que me coma até que doa
De vez em quando molho os lábios para trazer
a dor para dentro   mas devagar
Reconheço a minha poesia a doer por mim acima
cá dentro arde    sem voz ainda que a diga
ajudo a recolhê-la ensanguentada
a enovelar-se irreconhecível num novo caos
e precipito o seu transporte nas veias
cada vez mais quente    a borbulhar   e dói
porque cá dentro não há vento que a rebente
contra um fundo real    duro
O real é sempre mais duro do que o meu corpo
o meu corpo é mole    embala-a   liquidifica-a
Mas dentro do meu corpo    mais ao fundo
há sonhos constantes que se cruzam com ela
com a minha poesia em sangue
e como se fossem pedras  esses sonhos
atingem-lhe o muro de angústia com força
acabando por desfazê-la nesse alvo
numa ou noutra palavra
que expulso quando já não suporto mais
refazê-la assim no sangue
como se não existisse fora de mim.

Sem comentários:

Enviar um comentário