terça-feira, 5 de agosto de 2014

[Vem de mim o mistério da voz]

Vem de mim o mistério da voz
parturiente e parteira convoco-me
este momento é só meu
dou o corpo à morte - mudo
e fervilham-me os lábios logo
assim ofereço a garganta ao corte
os pulsos às amarras aos grilhões
as mãos em punho debatem-se ríspidas
as pernas afastam-se como pássaros tementes
tensa finco os pés na parede grossa
frente à cama  quente desta pré-convulsão
E é tanto o incompreensível que o nascimento
da palavra envolve que abro os olhos
para reter do vazio a primeira sílaba
lançada pela língua dolorosa em plena voragem
Ouço e só depois me liberto  a tomo e escrevo
como se a música pudesse compor-se saída de mim una.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

[Procuro instalar-me no interior do meu labor]

Procuro instalar-me no interior do meu labor
sem que alguém mo tenha ensinado
sem exigir qualquer disciplina de mim própria
sem esperar que outros o venham reconhecer
pois na verdade sei que desde que a poesia vem
não posso escapar nem cair para um lado de fora
ela vem e chega-me tantas vezes mais cedo
que é uma impossibilidade achar a alegria
noutro ponto que não seja aquilo que faço
aquilo que sou e vou sendo no interior desta
escrita da palavra em palavra de palavra de palavra.

[O meu melhor contributo para a literatura]

O meu melhor contributo para a literatura
seria urinar em cima dos «melhores livros
de sempre» como se fosse uma cadela insaciada
(e pelos vistos hoje a lista parece infindável)
Tentar que o cânone se refizesse a partir de um nada
um nada líquido e amarelado
um nada sobejante e inodoro tortuosamente resistente
e o que nauseabundo restasse se expusesse ao sol
nas mãos de qualquer pretensioso crítico
e o fizesse retroceder e querer respirar ar limpo
fora das milhares de páginas manchadas
da antiga da intocável literatura.