sexta-feira, 25 de julho de 2014

[Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas]


Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas
dos candeeiros da minha rua
(poeta alberto miranda nº 16 5ºE)
gritei aí umas dez vezes impetuosamente
e a frase subiu pela noite em direcção ao nada
Glória à voz, senhora poeta - pus a mão na garganta
que seria de mim meu Deus sem estas cordas
que seria de mim sem este eco de mim a parecer outros
que seria com gestos apenas com olhares ignotos
Venha o silêncio rodear as palavras
para dizê-las como se fossem as pancadas
de Molière - no início no fim desta peça de vida:
Voz agora e na hora da minha morte.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

[Lamento encher o coração de livros]



Lamento encher o coração de livros
ter batimentos sílabas versículos odes
no peito e na garganta como pequenas dores
o hoje e o amanhã parecem-me sempre longe
pressinto esgotar a força neste exílio de arritmias
por isso em cada pontada extrema chamo um filho
e digo: lança todos os volumes da varanda
mutila a capa as folhas rasga-os devagar
e vem depois pentear os meus cabelos
com a tua voz inclinada contra todas as inspirações
vem depois fechar-me os olhos contra mim
e torna-te todas as palavras de que preciso.


Imagem de: Serge Marshennikov

[Todas as manhãs tiro os seios da blusa]


«Eu sou o centro fixo que anima a dança»
Octavio Paz

Todas as manhãs tiro os seios da blusa
para fazeres deles o que precisas
para que os acaricies dançando
para beberes deles o veneno que te faz
suportar o dia e o princípio da noite
esses que te obrigam a demover jardins

Todas as tardes te lanço os meus braços
como ramos marinhos que crescem
às estrelas e acendo a luz do meu umbigo
para que saibas o caminho que tens de
semear depois do nosso abraço estreito

Todas as noites te prendo com as pernas
pois sei que és barco para fundear
e deixo que entres em mim como num cais
que assiste dorido às tuas frequentes partidas.

Imagem de: Serge Marshennikov

[Fazer amor é uma beleza mal apercebida]


«Quem diz de amor fazer que os actos não são belos
Que sabe ou sonha de beleza?»
Jorge de Sena

Fazer amor é uma beleza mal apercebida
pois é um hino feito de mil notas diminutas
que se tornam grandes apenas ao ouvido
de quem nele se esgota e canta
Porquê então trazê-lo envergonhado e oprimido?
Só porque lhe vêem da animalidade um mal?!
Quem diz que não é belo
aquilo a que o amor incita?
Retalhar o corpo e dá-lo aberto ao outro
sem saber se todos os pedaços de carne
e osso se reunirão pela sua ordem divina
se regressarão à sua unidade inicial
é dádiva e não só prazer distraído
Por isso digo: quem diz que amor é não fazer
beleza não sabe nem sonha o que esta é.

Imagem de: Serge Marshennikov