terça-feira, 24 de março de 2015

[Ao domingo tenho tido algumas crises de identidade]

Ao domingo tenho tido algumas crises de identidade
e durante as tardes de chuva perco o rumo de quem sou
sem que ninguém dê conta
e já não é a primeira vez que assumo nos poemas
que escrevo o nome de escritoras de incontornável valor
como hoje que assinei marguerite duras e me despedi
no último verso com um p.s. e uma frase em francês
que prolongava a despedida do meu amante chinês
tudo isto cheia de umas saudades esquisitas
que me pareciam mesmo verdadeiras e até me chegaram
à boca cheias de sons dentais e de estalidos que desconhecia
Quando acabei de escrever fiquei ainda mais angustiada
e senti-me uma poeta de destino incerto como me ensinou
Nuno Júdice numa fórmula de uma luz inexplicável
por isso lembrei-me de versos desse mestre e não consegui
fazer mais do que um avião do papel em que escrevi
o meu poema para poder atirá-lo da janela do meu quarto
para a rua e descer as escadas para o apanhar e meter novos
versos no meio dos que lá estavam até ninguém poder saber
quais eram os primeiros ou os últimos
mas antes de me sintonizar com a vida doméstica que estava
mesmo ao meu lado com os cozinhados à minha espera
admirei-me por não ter subido às nuvens com aquilo
que escrevi e só depois me lembrei que talvez fosse
por não ter lido em voz alta esse poema mudado.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

[Vem de mim o mistério da voz]

Vem de mim o mistério da voz
parturiente e parteira convoco-me
este momento é só meu
dou o corpo à morte - mudo
e fervilham-me os lábios logo
assim ofereço a garganta ao corte
os pulsos às amarras aos grilhões
as mãos em punho debatem-se ríspidas
as pernas afastam-se como pássaros tementes
tensa finco os pés na parede grossa
frente à cama  quente desta pré-convulsão
E é tanto o incompreensível que o nascimento
da palavra envolve que abro os olhos
para reter do vazio a primeira sílaba
lançada pela língua dolorosa em plena voragem
Ouço e só depois me liberto  a tomo e escrevo
como se a música pudesse compor-se saída de mim una.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

[Procuro instalar-me no interior do meu labor]

Procuro instalar-me no interior do meu labor
sem que alguém mo tenha ensinado
sem exigir qualquer disciplina de mim própria
sem esperar que outros o venham reconhecer
pois na verdade sei que desde que a poesia vem
não posso escapar nem cair para um lado de fora
ela vem e chega-me tantas vezes mais cedo
que é uma impossibilidade achar a alegria
noutro ponto que não seja aquilo que faço
aquilo que sou e vou sendo no interior desta
escrita da palavra em palavra de palavra de palavra.

[O meu melhor contributo para a literatura]

O meu melhor contributo para a literatura
seria urinar em cima dos «melhores livros
de sempre» como se fosse uma cadela insaciada
(e pelos vistos hoje a lista parece infindável)
Tentar que o cânone se refizesse a partir de um nada
um nada líquido e amarelado
um nada sobejante e inodoro tortuosamente resistente
e o que nauseabundo restasse se expusesse ao sol
nas mãos de qualquer pretensioso crítico
e o fizesse retroceder e querer respirar ar limpo
fora das milhares de páginas manchadas
da antiga da intocável literatura.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

[Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas]


Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas
dos candeeiros da minha rua
(poeta alberto miranda nº 16 5ºE)
gritei aí umas dez vezes impetuosamente
e a frase subiu pela noite em direcção ao nada
Glória à voz, senhora poeta - pus a mão na garganta
que seria de mim meu Deus sem estas cordas
que seria de mim sem este eco de mim a parecer outros
que seria com gestos apenas com olhares ignotos
Venha o silêncio rodear as palavras
para dizê-las como se fossem as pancadas
de Molière - no início no fim desta peça de vida:
Voz agora e na hora da minha morte.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

[Lamento encher o coração de livros]



Lamento encher o coração de livros
ter batimentos sílabas versículos odes
no peito e na garganta como pequenas dores
o hoje e o amanhã parecem-me sempre longe
pressinto esgotar a força neste exílio de arritmias
por isso em cada pontada extrema chamo um filho
e digo: lança todos os volumes da varanda
mutila a capa as folhas rasga-os devagar
e vem depois pentear os meus cabelos
com a tua voz inclinada contra todas as inspirações
vem depois fechar-me os olhos contra mim
e torna-te todas as palavras de que preciso.


Imagem de: Serge Marshennikov

[Todas as manhãs tiro os seios da blusa]


«Eu sou o centro fixo que anima a dança»
Octavio Paz

Todas as manhãs tiro os seios da blusa
para fazeres deles o que precisas
para que os acaricies dançando
para beberes deles o veneno que te faz
suportar o dia e o princípio da noite
esses que te obrigam a demover jardins

Todas as tardes te lanço os meus braços
como ramos marinhos que crescem
às estrelas e acendo a luz do meu umbigo
para que saibas o caminho que tens de
semear depois do nosso abraço estreito

Todas as noites te prendo com as pernas
pois sei que és barco para fundear
e deixo que entres em mim como num cais
que assiste dorido às tuas frequentes partidas.

Imagem de: Serge Marshennikov