quinta-feira, 11 de abril de 2013

[No quarto tenho coisas que por vezes voam]

Tudo se confunde já. Coisas e quimeras.
Samuel Beckett, Mal visto, mal dito


No quarto  tenho coisas que por vezes voam
não apenas quando fecho os olhos       N  ã  o
A frieza da caixa de jóias a disparar-se em ouros
capta minha atenção    e lá dentro    olhos de todas 
as cores     histórias que li   tudo pisca palavras acesas
num único lume      E eu quero ser séria     e não posso
Recolho essas sombras     essas mesmas sombras lidas
que ansiava ter nas mãos    dou-lhes tempo para se tornarem
fechadas   duras   tensas antes de as sublimar num voo
Antes de tudo deito-as sobre o candeeiro de pano branco
e nelas crio outras sombras mais esguias mais achatadas
(Beckett, não quero morrer ajoelhada nesse escuro
que as sombras têm por hábito estender no chão)
(Nem sou como a Velha que quer morrer   que se afasta
da fala para parecer que está definitivamenter morta)       
Agito então essas outras coisas que tirei de mim
Agora quadradas  fervem por se lançar no infinito
e uma luz   dentro de mim   avisa-me para um ouvido branco
de pano   que parece o candeeiro da mesinha de cabeceira
Um ouvido grande que começa a consubstanciar-se no ar
por cima da minha cabeça e fica à espera    suspenso
à espera que minha voz o penetre e fique lá para sempre
iluminada  visível   E eu cumpro   abro os olhos e vejo:
tudo voa e não há sossego no quarto que também roda
à volta da cabeceira da cama a confundir-me com  quimeras
que me forçam a abrir a boca  a lançar a língua como um jacto
de sangue sobre os livros  as telas  que estão nas prateleiras
nas paredes como deuses transformados nessas coisas supremas
para enfeitarem a minha solidão   solidão boa frente à janela
Arredo as cortinas como a tua Velha mas pergunto
O mundo que me quer? Mando estas coisas que me acontecem
dizer-lhe que estou ocupada e dentro do ouvido grande
que fico muito tempo lá dentro    frente aos tapetes longos
onde estão as folhas escritas por minha mão direita   sonâmbula
irrepreensível nos sonhos que ajeita no papel
mesmo naqueles mal vistos mal ditos
E só sossego, Beckett, quando tudo se confunde já. 
Coisas e quimeras.

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