Se eu quisesse enlouquecia
Herberto Hélder
Herberto Hélder
Se eu quisesse enlouquecia no meio de mim
partiria cedo para esse lugar alto
mal ouvisse os gestos dos outros
no centro da sala a dar entrada às horas
com vénias e muitos fumos
a instalar como um tesouro o tiquetaque
nos armários tapetes e afazeres constantes.
Cedo partiria sem ninguém dar conta
e sei - se eu quisesse enlouquecia no meio de mim.
Bastava ver a apontar para fora das coisas
que fazem da minha vida um sorvedouro
e numa incisão cruel à flor do peito
penetraria até à costela mais alta sem que
ninguém me visse. Aí mesmo deitada no osso
anularia qualquer adorno e instruída por mim
veria apenas:
praia deserta ou impreterível montanha
sorriso ou choro.
E daí diria crente o contrário das coisas.
Elas seriam as mesmas com esse outro som.
Depois rir-me-ia de tudo o resto
gargalhava
sempre com outras ou as mesmas palavras.
Imagem: Michał Łukasiewicz
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