domingo, 3 de fevereiro de 2013

Desfigurações


Quando leio até tarde perco-me sempre
a partir de determinado instante. É um segundo
visível, como se de matéria se fizesse pois sinto-o
tocar-me no ombro.Sim, nunca o confessei a ninguém,
seria desentendida, obviamente, pois o tempo nunca
é coisa a ver. O certo é que a partir do instante não vejo
mais texto. E tudo o que está fora do livro, da cama,
se apaga ou alterna. Apercebo-me apenas de que seguro
o livro nas mãos sobre o púbis encoberto, ao mesmo tempo
que se levantam sobre mim, sobre minha cama, notáveis
desfigurações. As letras do livro ficam outras, umas vezes
ameaças, outras, canções.

Leio sílaba a sílaba outras histórias vindas do meu estômago,
histórias que se cruzam e desaparecem empurrando novas letras,
globulosas perdições das minhas noites. E é apenas quando
o instante me toca neste ombro como esfaimado pedinte que em mim
tudo cega para o que existe em volta e vejo apenas a aura doida
daquilo que amo em desestabilizações opacas como se o real se
desmontasse noutros e não fosse eu que os visse
descrente e desacreditada.


Imagem: João Silva

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