segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Trago a minha avó morta na língua

À minha irmã Ana
Trago a minha avó morta na língua
- Não tive ainda coragem para a engolir
talvez por aquela última imagem
em plena praia deserta ou seria um cemitério?
em que a invadiu uma luz primordial
que lhe acendeu a testa de uma cor falsa
temerosa como o fim da tarde mais belo
Essa mesma luz falsa cobriu-lhe  os cabelos raros

da cor da morte longa e indiferente
amarela cor amarela excessivamente amarela
e quase cega dessa abundância disfarçada de nada
deixei-me impressionar pelos seus lábios murchos
pintados que adiavam a ausência sequencial
daquele rosto vazio
foi minha irmã quem os pintou com
o seu batom novo e vivo

- a avó sempre gostou da maquilhagem
mesmo depois de morta absorveu a cor
com a mesma pressa e vaidade dos vivos
Vi-a nitidamente morta e ela era a síntese de
uma colina florida
flores de odores fortes cobriam-lhe os pés
recolhidos como raízes numa floreira
e ela parecia uma encurvada flor a crescer velha

a crescer vorazmente em direção ao não ser
ficou muito alta mesmo muito alta por quase
já não existir
O vestido azul que lhe vestiram também era
florido e bonito demais para aquele
momento sombrio de destituição
brilhava excessivamente dentro do caixão
e era como se a visse ir deitada a uma festa
mas nem ali naquela fresta nem na minha língua
ensopada de saliva como estava, a avó poderia
levantar a cabeça e dançar ondulando o seu corpo

Para além de tudo isto ouvi chorar chorar chorar
e entendi a consistência da reza a partir do choro

Agora afasto essas visões mudas da cabeça
para cobrir a morte com palavras
e a avó mexe-se um pouco curva-se para o meu céu
da boca - eu sinto-a impertinente pois
leio-lhe a voz mesmo depois de morta -
a voz dos meus mortos nunca se apaga
fica apenas mais achatada e desfaz-se líquida
nos meus ouvidos para que mais ninguém a ouça

E assim correspondo ao seu pedido perdido
prenso-a um pouco a medo
contra os meus dentes que ajudam a exilar gravemente
aquela fenda em que ela se tornou
dentro da minha boca - antegrito de qualquer fim -
e porque a morte também é palavra
profiro-a neste poema para que a possa erguer alta e
interminavelmente grandiosa lhe devolver a vida.

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