sábado, 28 de setembro de 2013

[O poema dos pássaros que ontem à noite escrevi]


«- O poema dos pássaros que ontem à noite escrevi
   não é poema não é nada. É uma hipocrisia pegada.
   Um absurdo à minha frente. O que me dizes a isto?»
(Sentada na cadeira para pensar melhor com o corpo todo)
«- Não dei conta de nada. Não dei conta de nada.»
«- De que vale ser a poeta deste poema nesta vida
  se fora do texto ter pássaros é insuportável para mim?
«- Acalmas a tua repulsa. Dás-lhe a gaiola da estrofe
   e a beleza da palavra. É da palavra que gostas.»
«- Sinto aversão ao meu poema como a personagem
   d' A Pomba  à pomba que não se vai dali.»
«- É da palavra que gostas. Só os pássaros esvoaçam
   com delicadeza como os sons vocálicos que amas.»
«- Que grande hipocrisia é afinal a poesia nas minhas
   mãos... Queria amar de verdade o que digo
   para sempre.»
«- Mas trazes pássaros na memória muito comodamente.
  Eles são imagens fortes mesmo que te arrepiem de medo
  ao passar rente à cabeça. Dentro de ti são felizes.»
«- Não dês desculpas. Tu e eu    sabes bem
   somos eu e eu. Um diálogo de mim para mim
   ou estarei louca?»
«- Outra inverdade. Escrever é uma loucura absoluta.
   Podes sempre mudar a pessoa gramatical. Retirar
   o travessão e fazer um monólogo  respeitado.»
«- Convincente queres tu dizer? Como fiz com os pássaros.»
«- Convencer sem crer é coisa difícil de fazer com palavras.
   Esse é o teu amor maior. Pior é fazê-lo com o olhar.»

(Agora de mim para mim    recorrendo à didascália
utensílio dramático  para não levantar dúvida nenhuma)
«- Só sei que quanto mais escrevo menos digo as verdades.
   As minhas verdades. Importa-me é agarrar as palavras
   como pesos e fazer com elas uma espécie de halterofilismo
   que faça de mim mais forte na expressão. Mais forte a cada dia.
   Elevo-as e baixo-as com esforço. Suo. E quando sinto o corpo
   enrijecido para levar com a poesia toda na cara como um murro
   ponho o ponto final e dou por findo o meu poema. Apago a luz
   até sentir que sou real porque não vejo no escuro e que
   aquilo que faço é físiológico e tremendamente confuso.»

Imagem: E. O. Hoppe

Sem comentários:

Enviar um comentário