O rosto da minha avó foi hoje um sonho
Encontrei-o por acaso num buraco
do seu quintal Ela sorria e parecia querer
que eu lhe afagasse os cabelos molhados
da chuva que invadiu aquele fosso
A brancura extrema dos seus cabelos
encharcados talvez tenha sido o que mais
me impressionou naquela aparição
A sua língua estava inundada e tinha peixes
na boca Com tanta água não conseguiam vir
à tona as palavras Era uma velha sem língua
Não parecia a mesma sem poder falar
emitir um som meigo um beijo mesmo o sorriso
era diferente embaraçado da clausura
Os cabelos atrapalhavam Eram brancos demais
e matavam todas as outras possibilidades de cor
E assim não havia ponte para chegar até mim
nem som nenhum que nos unisse de facto
Apenas o sorriso talvez um meio sorriso
Apenas a brancura extrema A água
Pareceu-me ver os meus primórdios naquele buraco
mas mal eu me baixei para a ver de perto
e certificar-me de que era ela realmente
só deu tempo de apanhar um peixe que nadava rente
às gengivas e parecia uma sílaba saudosa ssssssibilante
e os seus olhos fecharam-se. A morte levou-a outra vez.
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